SEIS PROPOSTAS PARA A PINTURA DO NOVO SÉCULO

O projeto desta exposição corresponde ao trabalho que venho desenvolvendo nos três últimos anos, a partir de um quadro que pintei em 1999, que apresentava uma mudança radical de estrutura em relação ao tipo de composição que eu vinha fazendo até então.

Desde Caravaggio, o objetivo da pintura é construir um espaço autônomo, isto é, contido em si mesmo; e, naturalmente, singular, permanente e vital. Meu presente trabalho segue esta tradição, e mais, pretende mostrar como ela se insere e quão relevante ela é para a discussão atual do estatuto da pintura frente à questão de novas tecnologias e seu impacto na visualidade do mundo contemporâneo. O trabalho pretende, sobretudo, demonstrar o impacto da monumentalidade em estruturas formais.

O homem é o único animal cujos sentidos derivam não apenas da evolução biológica, mas também de uma história cultural, já dizia Marx. Assim, a pintura cria objetos plásticos, produtos da exploração do domínio visual: universo das formas, volumes, cores, valores, expressão da luz e do movimento. O olho do pintor, associado a sua mão, edifica uma arquitetura de formas, uma linguagem de geometria figurada e colorida que, embora diferente da linguagem explicitamente quantitativa da ciência, resulta de uma investigação do campo visual, de suas possibilidades, de suas regras de compatibilidade. Enfim, a pintura deriva de um saber, de uma experimentação da ordem do visual.

Discute-se atualmente a problemática tempo-espaço na sociedade contemporânea: novas tecnologias regorganizam representações estéticas do território contemporâneo. O espaço não é construído só do ponto de vista material, mas também pela profusão de efeitos especiais que afetam a percepção do tempo e das distâncias; a observação direta seria virtualmente substituída pela interferência da mídia.

Dentro desta discussão contemporânea, eu contraponho, como pintor, a observação de que, desde o tempo da invenção da fotografia, as tecnologias têm adicionado recursos às dimensões humanas, sem necessariamente subtrair. Assim, da mesma maneira que dicionários e bancos de dados nos ajudam, mas não interferem em nossa capacidade de guardar milhares de palavras na cabeça e usá-las como quisermos, inclusive elaborando sentidos na medida do próprio uso, do mesmo modo as tecnologias da imagem se adicionam ao recursos visuais naturais, cujos segredos continuam a nos fascinar. Por que somos atraídos e fascinados pelo brilho e reverberações multicores dos diamantes bem lapidados? Por que nos causa tamanho impacto a massa bruta das montanhas? Por que “vemos” formas ausentes, preenchendo como imagens mentais o que concretamente não está diante de nossos olhos? Essas perguntas continuam atuais e são objeto de diferentes pesquisas na ciência cognitiva contemporânea. O trabalho que estou desenvolvendo se concentra em algumas destas questões, mas em termos da abordagem pictórica.

Talvez eu possa resumir da seguinte maneira a questão para a qual esta exposição pretende dar uma resposta. Diamantes e montanhas são duas dimensões da pedra, que diferem em tempo e monumentalidade. Com a exposição, pretendo mostrar como a pesquisa do equilíbrio dinâmico de elementos formais na pintura nos dá soluções formais para abordar a questão da monumentalidade e seu impacto na visão humana.

Com esse título, minha exposição de 2002 no MNBA, além de apresentar meus últimos quadros de formatos monumentais, presta uma homenagem aos temas introduzidos por Italo Calvino nos cinco ensaios preparados para as “Norton Lectures” de 1985 de Harvard, que, devido à morte súbita do autor, nunca foram proferidas. Os temas são “Leveza”, em oposição a gravidade; “Rapidez”, no sentido de economia de meios; “Exatidão”, “Visibilidade”, antes direcionada ao imaginário do que contribuindo ao constante bombardeio de imagens; “Multiplicidade”, no sentido de dar vez às facetas da obra; e “Consistência”.

Atributos todos que considero fundamentais para a pintura emergente após trinta anos de conceitualismo nas artes plásticas ocidentais.

Estava pintando quando recebi um telefonema de minha cunhada me avisando do ataque às torres. Liguei imediatamente a televisão e uma das torres já havia caído; poucos minutos depois, assisti à queda da outra. Neste momento, vi a fumaça negra tomar o que era todo o sul de Manhattan. Senti que Nova York inteira parou encoberta pela escuridão espessa, concreta; senti eu próprio parar.

A única vez anterior em que tudo parou foi há 35 anos, quando li um canto de Eudora Welty sobre o pintor e primeiro conservacionista Audubon caçando a garça que ele universalizou pintando para seu livro “Pássaros da América do Norte”. No instante do disparo de sua espingarda, o mundo inteiro parou iluminado pelo branco da garça permeando tudo com seu estado de graça, e quem testemunhou ficou transfixado naquela eternidade de branco luminoso.

Hoje, passados quinze dias, continuo em grande parte parado. Há um fundo vazio-escuro insondável. Os eixos são destroços. A Lua se afastou da terra e camuflou-se na sombra infinita. O planeta gira instavelmente.

I – INTRODUÇÃO

O projeto que apresento para a exposição O ARTISTA PESQUISADOR corresponde à parte mais recente da pesquisa que venho desenvolvendo nos últimos três anos, a partir de um quadro que pintei em 1999, com características estruturais inteiramente diferentes das que eu abordara nos dez anos anteriores de trabalho pictórico e pensamento sobre a pintura; diferentes, também, das propriedades da série na qual eu trabalhava (v. III, abaixo).

II – O PLOBLEMA e COLOCAÇÕES TEÓRICAS

Toda a pintura, desde o trabalho pioneiro de Caravaggio, luta para construir um espaço pictórico autônomo e desligado de tudo o mais, e que seja ao mesmo tempo singular, permanente e vital. O trabalho a ser aqui descrito em seu processo e proposto em seu desenvolvimento segue a tradição de manter a autonomia da pintura, mas com o propósito de inseri-la na discussão atual sobre o estatuto da pintura diante da emergência de abordagens interdisciplinares e diante da questão das novas tecnologias e seu impacto na visualidade no mundo contemporâneo. Paralelamente, o trabalho se insere numa linha de pesquisa que corresponde ao ângulo pragmático das questões relacionadas à interface visualidade/cognição. O trabalho pretende demonstrar as conseqüências do impacto da monumentalidade em estruturas formais, assim fornecendo subsídios para as pesquisas no campo da visão na ciência cognitiva.

Segundo Marx, o homem é o único animal cujos sentidos não são simplesmente derivados da evolução biológica das espécies, mas produtos duma história social e cultural, especialmente duma história das diversas artes nas suas especificidades. Assim, a pintura cria objetos plásticos, produtos da exploração do domínio visual: universo das formas, volumes, cores, valores, expressão da luz e do movimento. Ainda segundo Marx, o olho se teria tornado humano com a criação de produtos enquanto objetos de visão na sociedade, ou seja, quando passou a haver uma dimensão estética, independente do interesse prático e valor de uso. Esta percepção encontra respaldo em trabalhos neurológicos contemporâneos, em que se verifica a quase impossibilidade de recuperação da visão funcional após total recuperação biológica. Interpretando as colocações de Marx no domínio da pintura, Vernant e Vidal-Naquet propõem que o olho do pintor, associado à sua mão, edifica uma arquitetura de formas, uma linguagem de geometria figurada e colorida que, ainda que diferindo da linguagem da ciência, não deixa de ser, a seu modo e no seu registro, uma exploração do campo visual, de suas possibilidades, de suas regras de compatibilidade e incompatibilidade, em suma, um saber, uma espécie de experimentação na ordem ótica.

Já Paul Virilio, colocando a problemática tempo-espaço na sociedade contemporânea e discutindo a poluição temporal provocada pelos meios de comunicação, problematiza a questão do espaço construído, embora focalize sobretudo a arquitetura urbana: ” Não esqueçamos que, ao lado das técnicas de construção, está a construção das técnicas, o conjunto de mutações espaciais e temporais que reorganizam incessantemente, com o campo do cotidiano, as representações estéticas do território contemporâneo. O espaço construído não o é exclusivamente pelo efeito material e concreto das estruturas construídas, da permanência de elementos e marcas arquiteturais e urbanísticas, mas igualmente pela súbita proliferação, a incessante profusão de efeitos especiais que afetam a consciência do tempo e das distâncias, assim como a percepção do meio” Segundo Virilio, a arquitetura se teria introvertido e “cedido espaço” ao eixo temporal explorado pelos meios de comunicação, que teriam revertido a ordem de relevância do espaço presente tornando possível e mesmo banal, em tempo imediato, o acesso a qualquer espaço. Ou seja, em suas palavras, “a partir de agora assistimos (ao vivo ou não) a uma CO-PRODUÇÃO da realidade sensível na qual as percepções diretas e mediatizadas se confundem para construir uma representação instantânea do espaço, do meio ambiente.(…) A observação direta dos fenômenos é substituída por uma teleobservação na qual o observador não tem mais o contato imediato com a realidade observada”.

Embora apreciando a relevância do trabalho analítico de Virilio em relação ao alargamento de abrangência de espaços e conformação de percepção de espaços pelas novas tecnologias, que instaura uma nova realidade, contraponho, como pintor, a observação de que novas “tecnologias da inteligência” se adicionam ao cabedal humano, sem necessariamente subtrair. Assim, da mesma maneira que os bancos de dados e dicionários não se substituem ao léxico natural dos falantes; da mesma maneira que os livros impressos não se substituem ao domínio textual da língua escrita; da mesma maneira que os computadores auxiliam mas não substituem as atividades mentais do ser humano, assim as tecnologias de transporte e desfiguração da imagem se adicionam ao cabedal de recursos que alargam a instrumentalidade a serviço do ser humano, a partir das “funções da razão” de que fala Whitehead, ao invés de substituirem a “tecnologia” natural da visão humana, que continua a nos desafiar.

Por que somos atraídos e fascinados pelas reverberações multicores dos diamantes bem lapidados? Por que nos causa tamanho impacto a massa das montanhas? Por que “vemos” formas ausentes, preenchendo com imagens mentais o que não aparece em termos concretos na linha da visão? Estas perguntas continuam atuais e são tenazmente perseguidas em inúmeras pesquisas da ciência cognitiva contemporânea. Algumas destas questões são focalizadas na linha de pesquisa da qual emerge o presente projeto: diamantes e montanhas são duas dimensões da pedra que diferem em tempo e monumentalidade. Com a presente proposta pretendemos mostrar como a pesquisa do equilíbrio dinâmico de elementos formais na pintura nos dá soluções formais para abordar a questão da monumentalidade e seu impacto na visão humana.

III – HISTÓRICO e DESCRIÇÃO DA PESQUISA

Em 1999 fiz um quadro que era estruturalmente novo em relação a todos os meus prévios 10 anos de considerações sobre pintura; e também diferente de tudo o que eu estava fazendo na série de pinturas em curso naquele momento. Este quadro teve sua composição reelaborada em escala maior, ampliada por um fator de pouco menos que dois.

As dimensões do quadro original eram 1m x1.10m e a versão ampliada era 1.80m x 1.90m. A decisão de partir para uma escala maior foi motivada pela necessidade de mais espaço de manobra em relação à dinâmica do campo de cor e ao volume. Esta segunda versão foi concluída no início de Fevereiro de 2000 e, a partir deste começo, foram construídas mais 11 variações subseqüentes, constituindo um conjunto de 13 quadros até agora, incluindo-se o trabalho que originou a série.

Como pode ser observado no registro fotográfico anexo a esta proposta, a série é constituída de variações derivadas de um quadro original e o conjunto total forma uma seqüência metódica de abordagens de questões formais levantadas a partir do primeiro trabalho.

Os seis primeiros quadros na cronologia desta série utilizam uma matriz para determinar o plano medial intermediário do espaço pictórico de cada quadro. Esta grade (“grid”) serve para estabelecer o plano frontal (“foreground”) de formas precisamente definidas, gestos e padrões que, em conjunto, utilizam intensa justaposição contrastiva de cores e fortes contrastes de valor claro-para-escuro. A grade da área medial marca e efetua a transição para o plano de fundo de áreas indeterminadas e campos de cor. Estas seis composições enfatizam projeções espaciais para a frente do plano pictórico e também para trás, em direção ao plano de fundo, indeterminado, em profundidade, por meio de uma matriz de plano medial que estabelece a intermediação das projeções para a frente e para trás e, adicionalmente, estabelece o volume inerente à superposição de formas definidas com precisão sobre um padrão e sobre a imprecisão misteriosa das áreas e campos de cor do plano de fundo. Os espaços pictóricos destes quadros envolvem o expectador num espaço visualmente esférico, que avança sobre ele de modo a colocá-lo no plano medial, como se o expectador pudesse ver atrás as formas se projetando a partir do plano pictórico; e também o projeta para o plano de fundo.

No sétimo trabalho da série, intitulado A Casa Californiana, a matriz que estava no plano medial avança para o começo do plano pictórico; a orientação horizontal-vertical da grade incorpora as diagonais de 45º presentes anteriormente nas formas, gestos e padrões do plano frontal. A frontalidade resultante modifica os espaços pictóricos. Em lugar do espaço pictórico criado com a utilização de contrastes precisão/imprecisão, os espaços pictóricos modificados emergem e se organizam por zonas de cores, movimentando-se para frente e para trás do plano pictórico através da justaposição de cores quentes a frias de intensidade e valor equivalentes, através das quais as luminosidades são mediadas e intensificadas pelo entremeio de amplas formas brancas em equilíbrio dinâmico com a cor. Como resultado, temos composições monumentais.

IV – ESTADO ATUAL DA PESQUISA e A PROPOSTA PARA A EXPOSIÇÃO

Os quadros Crystaline, A Casa Contemporânea, Urban Structures, Em Ritmo três por quatro e Le Peintre et son Modèle foram todos pintados com a grade no plano do quadro e todos foram feitos em escala relativamente pequena. A próxima fase da pesquisa consiste em otimizar a monumentalidade dos quadros supracitados através de uma reelaboração das composições em escala duas vezes maior. Nesta escala, as tensões comprimidas dos quadros originais sofrerão total descompressão e todos os ritmos e equilíbrios de cor obterão maior espaço para expandir cada composição até seu potencial máximo de monumentalidade.

Especificamente para a exposição “O Artista Pesquisador”, minha proposta é reelaborar o quadro Crystaline, expandindo seu tamanho de 1.20m x 1.70 para 2.40m x 3.40m, e montá-lo no espaço fornecido para a exposição, de 3.80m x 4.00m; e iluminar devidamente o novo quadro, usando o equipamento de iluminação da própria exposição do MAC. Daí o novo título do projeto, Crystaline vezes dois.