O ESPETÁCULO DESCONCERTANTE DO MUNDO

I. DESCONSTRUÇÃO

O que se revela imediatamente, pela contemplação da atual série de telas de Nicholson, é a busca pelo pintor de uma outra modalidade de relação do sujeito com o espaço. Certamente, contemplação inquietante, produzida pelo descentramento do sujeito do olhar. Polivalência e esfacelamento do olhar, num ato de pintura essencialmente ainti-contemplativo, que exige do sujeito que olha um comprometimento com o que se exibe na materialidade da tela. O sujeito não pode continuar sendo o mesmo após o seu percurso pela cena pictórica. Percurso inquietante do olhar que revela o ato constituinte da pintura em exibição. Pela mediação do traçado intrincado das formas e do colorido fulgurante, que permeiam a cena plástica, uma nova experiência da espacialidade está em curso. Invenção da experiência espacial que se inscreve no fundamento da pintura, pela reinvenção permanente do ato de olhar. O olhar ingênuo é logo capturado pela busca, sempre recomeçada pelo artista, para delinear as coisas em estado simplificado. Para isso, a luminosidade da construção pictórica é fundamental, pois é através dela que os constituintes das coisas se revelam na sua simplicidade essencial. Daí o seu impacto quase perfurante sobre o olhar, que é absorvido pela materialidade das manchas e das cores derramadas. Nesta afetação pictórica o efeito maior sobre o sujeito é o desconcerto. O que está em processo de produção artesanal é uma proposta de redescoberta do mundo, mediante a qual se realiza a descontrução da espacialidade instituída na representação do cotidiano e na ação técnica sobre a realidade social. Podemos entrever, pela intencionalidade esboçada, a existência de outras formas de apropriação sensorial das coisas, tanto para a modelagem dos objetos do mundo quanto para a enunciação de seus sentidos, nas suas diversas formas de ser.

II. INFORME E DESAMPARO

A impressão primeira, que afeta o olhar diante de cada uma das telas apresentadas, é a da exibição de formas diversas que se multiplicam num oceano de cores, mas não podemos definir imediatamente uma linearidade formal: uma seqüência enunciativa deste estado de coisas. Então, experiência originária de perplexidade pelo horizonte infinito de possibilidades que nos é oferecido. Porém, o artista define um tema, pelo título que é conferido para a tela. Com isso oferece uma pista para inquirirmos o ser da massa plástica que exibe. Contudo, é apenas uma pista, diria mesmo um índice, situado no limite do indeterminado e do quase inefável. A qualquer momento as marcas oferecidas perdem o poder de indicação e se dissolvem inapelavelmente no universo de outros traços e de reuniões de cores. Nem figura, nem fundo. Momentaneamente ficamos como Teseu, perdidos na escuridão do labirinto, num estado de suspensão. Entretanto, logo em seguida somos salvos da angústia do informe. Outros traços se oferecem à percepção e se ordenam como manchas cintilantes para os percursos do olhar. A cena pictórica que se perfila assume uma nova textura e consistência, com profundidades e fulgurâncias cromáticas bastante diferentes da anterior. Uma nova pista se impõe e se faz presente no espaço do olhar. Com isso, uma narrativa outra das formas se esboça, impondo ao imaginário uma nova estória. Porém, em seguida esta configuração última também se desorganiza, dissolvendo no caos a formalização restaurada. Somos lançados então na inquietude labiríntica. Teseu desamparado pelo excesso de luz, pela infinitude de caminhos possíveis de serem percorridos. Contudo, uma outra pista se aponta no espaço, de maneira inconfundível pela seqüência das formas ordenadas, que um outro recomeço se impõe inapelavelmente ao olhar desamparado. E assim sucessivamente… Enfim, nesta experiência do olhar o sujeito é instigado permanentemente a se inscrever em configurações espaciais intermináveis e inéditas, de maneira a descobrir seu desamparo diante do espetáculo das formas e a fabilidade de qualquer ato de olhar.

III. HETERÓCLITO E ESPETÁCULO

O que estou querendo dizer com tudo isso? O que o artista nos oferece para o usufruto é uma tentativa de produção permanente do espaço. O espaço não é uma substancialidade existente, mas uma criação constante do ato de olhar. O espaço não é um quadro estático, preenchido por formas estáveis para os percursos lineares do olhar. O espaço é um universo infinito de arranjos de traços e de cores, sobre o qual podem se impor diferentes ordenações, se considerarmos como referências as pistas que nos são oferecidas. Porém, é preciso se precaver de uma interpretação apressada, que diria que a experiência em pauta se reduziria a oferecer ao consumidor da obra um lugar crucial como sujeito, constituinte pois de sua direção pictórica. Um lugar de co-autoria do olhar. Evidentemente, esta posição do sujeito do olhar é um pressuposto desta experiência estética. Contudo, não é este lugar comum da modernidade da arte que se enuncia aqui, mas algo que ultrapassa este sistema teórico de enunciados. Assim, o que se apresenta uma novidade é que a mobilidade do mundo se oferece como espetáculo. O que implica dizer que o mundo é um lugar de reinvenção permanente. Nada está escrito. Tudo está por escrever e se reescrever, na redescoberta do saber do mundo. O mundo é uma orgia de manchas coloridas, onde as formas e as linhas se configuram de maneira imprevisível. Seria esta mobilidade do mundo que nos indica que a experiência do espaço em pauta é inteiramente perpassada pela temporalidade. O tempo é a potência que ordena as manchas como formas cintilantes, descentrando o poder do olhar e a soberania do espaço. São as diversas temporalidades possíveis que funcionam como constituintes e desordenadoras da própria concepção instituída do espaço. O tempo funda o espaço pictórico, pois “tudo que é sólido desmancha no ar”(Kundera). Seria esta a condição de possibilidade para a multiplicidade de narrativas, na medida em que o ser implica o vir a ser, essência caótica do espaço que descobrimos pela magia das pinceladas do artista. A aventura que nos é imposta é a de penetrar num tobogã visual, onde o rugoso convive com o suave, o plano com o volumoso, a reta cortante com a harmonia da curva. A experiência é de queda e de vertigem, onde o que existe de abisal na desconstrução possibilita os novos horizontes de ordenação do mundo. Desta maneira, esta experiência visual nos remete ao que é originário nas formalizações do mundo, e, ao mesmo tempo, ao fundamento cromático das coisas. É o heteróclito que se impõe como presença. A luminosidade do caos estaria na origem da experiência pictórica do mundo onde a temporalidade das coisas desestabiliza o espaço cartesiano: permite ao sujeito a polissemia de diferentes narrativas. Pintura dodecafônica, onde outras harmonias ainda não decifradas regulam a produção das imagens. Neste contexto, o mundo seria heterogêneo por natureza, mas a nostalgia da permanência e da repetição imporia ao sujeito uma adesividade viscosa à linearidade das formas e das narrativas.

IV. HUMOR TRÁGICO

Assim, é uma leitura sobre as origens que funda a intencionalidade do artista . Daí porque algumas das telas têm títulos que remetem à idéia de fundamento e de mitos originários: “Du Monde”, “Psyche” e “A Queda”. O percurso temático do artista se realiza como uma cosmogonia em estado plástico, em que entre o mundo e o mito instituinte da psique a queda é irrevogável na própria contemplação de cada tela. Porém, como o artista é atravessado pelo humor e pela gargalhada irônica do artesão, que desconfia da retórica platônica, habitando um mundo onde o abissal rima com legal, outros títulos propõe uma brincadeira com a seriedade do imaginário ocidental. Desta maneira, o quadro serve apenas para ser “pendurado”, assim como a imagem do “Lion´s Head”, que se inscreveu em diversas epopéias plásticas da Antiguidade e do Classicismo, funciona como catalizador para a dissolução do reino do espaço. Enfim, o artista parece nos querer dizer que a experiência plástica do mundo, enquanto heteróclita, não é o drama do sujeito por não permanecer na linearidade da narrativa unívoca, nem o sofrimento inglório de não poder se paralisar o movimento das coisas e a descontinuidade do mundo, mas é a vibração de se apreender a vida na sua fruição. O mundo como luminosidade enuncia o trágico, pois a evanescência do espaço toma presente a angústia. Porém a alegria é o seu contraponto, pois o recomeço do mundo é sempre possível e desejável. É para esta participação nos segredos indizíveis da mobilidade do mundo que nós somos convidados incansavelmente pela sedução plástica do artista.