NICHOLSON

Estamos diante de Nicholson, de uma arte fulgurante, complexa. Pós-moderna. Da arte Nicholson; de parte, apenas – Nicholson nos últimos cinco anos. Escreve-se Nicholson para, com essas letras, tal como impressas nas telas, reter, num único vocábulo, o feixe incomensurável de imagens, referências, sinais, desdobramentos e particulares conexões de que se formam as pinturas. Poderosas tautologias das superfícies a indicarem, menos que os sentidos, os seus campos de mutação. Múltiplas cenas são recolhidas de outros sítio estético e cultural e, então, dispostas e ressignificadas; outras assinalam para o próprio horizonte da pintura, conforme sua convenção de integridade visual. Os sentidos devem-se, ao ali estarem, aos novos intercâmbios, à interação provocada e não a um valor simbólico prévio qualquer. Trata-se de territórios e, portanto, de exterioridades. As exterioridades das estampas, sempre remetendo uma imagem a outra , por meio de processos associativos e conforme o conhecimento óptico que, em maior ou menor extensão, todos temos. Abrangem-se o imaginário clássico e suas figuras, bem como o imaginário moderno e seus logotipos. A arte Nicholson a lidar com o repertório plástico coletivo, uma espécie de memória a ser chamada, cruzada, e assim, gerar outros estados de percepção. A estabelecer redes de grafias. Com elas, reagenciam-se os componentes dos quadros expostos por uma aparente (ora serena, ora tumultuada) assistematicidade. Com excelência formal e com o mais minucioso rigor, empenha-se no fabrico da trama pictórica: o aleatório projetado, a inteligência do acaso. Dessa inteligência, fazem-se essas obras Nicholson. Operam sobre tropos, recodificam-se as imagens feitas, imagens pop-eruditas. A atualidade e a herança estética. Sem mais o fito de destruição das vanguardas, agora o acolhimento, o antigo, o novo, o diverso e o nômade. Mudanças de setas (grafadas em vários quadros). A arte dos trânsitos, das comunicabilidades antes aberrantes de lugares e épocas. A história no vão sincrônico dos quadros, os vários níveis e ritmos. Pancronias.

Por vezes detalhes, completamente preciosos, por vezes a marca do pincel, os volumes, a alusão ao óleo – este, substituído no conjunto das obras pela água, pelo franco artifício do acrílico, mais adequado ao sistema das artes de impressão a que as tecnologias das telas aludem. Aludir. Não na tentativa de dizer a coisa inapreensível e enigmática, contornando-a; mas sim explicitar os meios de referir da pintura: o trabalho, os instrumentos, as relações com outros tipos de linguagem. Aludir. Não ao quê, ao como. Cinematográfico, vertiginoso – o diálogo com a velocidade do clipe. A recepção ágil, estelada, face a verdadeiros gestalts, tornando tudo figura e campo ao mesmo tempo. Projeções de esquemas sensórios já com as correções do artista. John Nicholson, ele mesmo leitor e desconstrutor das hierarquias criadas para a variedade dos elementos e recursos avocados.

Nas muitas imagens e técnicas em ação, nem o anonimato, nem a unidade arrogante de um sujeito. Distância, exame, auto-consciência, e entrega. Vitalidade. A intercultura, o local, o tópico. Diferença e ajuste. Pois a tela, por maiores que venham a ser suas dimensões, será sempre um espaço recortado. Por isso pode-se cindi-la mais ainda (algumas serão feitas de pequenos quadros, em que telinhas compõem o plural da grande tela). Sob os limites desse espaço Nicholson, quaisquer que sejam, concentra-se o máximo de informações. Informações plásticas e, portanto, culturais, sociais, históricas.

Os quadros interagem com alguém que participa de algum modo da convenção da arte pictual; alguém que conheça um pouco, pelo menos, das imagens que foram com o tempo se repetindo e por fim se fixando. A fixidez é tornada transitável (como bem fazem aquelas telas cuja grandeza se estabelece no eixo das inter-relações de objetos retornados, seja para deslocar ou pastichar). O que ocorre também – e especialmente – é a problematização das tecnociências da pintura, perguntas sobre o como executar o quadro único, trazendo para ele os meios e os instrumentos das obras que se replicam por processos reprodutivos. Princípios das artes da impressão, aceitos pelo emprego de materiais elementares, desviados de sua função habitual para servir à potência máxima do uso estético. Nas telas, o regresso à tradição, novos vínculos com o passado e o presente; há ironia, porém não mais como a dos modernos – a que nasce da vontade de destruir ou abalar. Agora, em Nicholson, a ironia leve, cheia de afeto, que reconhece, e oferece-nos, a graça contida nas grandes imagens canônicas de outros universos artísticos – as linhas amáveis da Vênus de Milo, a suavidade das colunas greco-romanas. Mas também a tesoura, a banana, a representação cúbica e alfabética do gelo, e a letra, a balança ( não a justiça); só os sinais, o valor gráfico. Adaga e pedestal. Ferir e elevar. Erguer.

Para além do virtuose em seus fantasmas de limpeza e aprimoramento advindos das muletas do já saber-fazer, expressa-se a argúcia do fingir, do criar ficção, exercitando a capacidade de, conhecendo, pesquisar. O não-saber e sua pedagogia. Deixa guiar-se por outra espécie de vontade, valendo-se dos instrumentos de bordo para compor mapas, horizontes, áreas. Nessa deriva, a fabulosa potência do corpo como um valor entre os homens. Todo esse desenho sob o foco da cor, o deslumbramento da cor. Exata na temperatura a ser sentida na tela, em sua variedade de caráter. As vezes plácida e nevada, às vezes às gargalhadas, às vezes trágica, e inteiramente agonística. O pentimento (camada sobre camada), réguas esquadros arabescos como se de gesso. Os apliques, a função feliz e risonha do ornamentalismo a refletir sobre os mitos da beleza. A beleza, seus signos altos e seus signos banais, lado a lado.

Um brechtianismo na pós-modernidade: distanciamento no olhar e proximidade no fazer. Ali, nas telas, à mão – a ciência das mãos. Articulando, dispondo, tendo em conta a inexorabilidade do imponderável. Gesto, expressão. E conceito. De onde todo a afinal arrebatador erotismo. Na tela, a idéia, a mão, o aceno, o toque. Sob a regência das formas.

E os signos das cidades a retornarem. Amsterdã, Tóquio, Roma, Las Vegas, Rio, Berlim. A Irlanda. Joyce. As Américas. Sem símbolos (por carregados demais de sentidos primeiros), só traços, possibilidades de significações. Sendo tudo de natureza imagética. Um imaginário abrangente e radiante em construção, à nossa frente exposto, em sua pluritempoespacialidade. A pincelada solta, enorme e bela, indicará o mais vivo e direto presente, sinal de afirmação da existência da pintura, do seu there is. Faz parte do tema, se quisermos assinalar um, da imagoteca Nicholson: recolha, distribuição e amostra da esplêndida fartura visual do mundo. Roberto Corrêa dos Santos