JOHN NICHOLSON: OUTRO HORIZONTE COGNITIVO
DA PINTURA NORTE-AMERICANA

Este ensaio tem como objetivo contextualizar o trabalho de John Nicholson no panorama plástico da pintura norte-americana. Parte integrante deste panorama, sua práxis é percebida e desenvolvida a partir deste imenso legado. O texto pretende tornar pública uma característica da pintura de Nicholson, a transfiguração, ou seja, um processo que percebe não existir fronteiras entre figuração e abstração. Este procedimento pode ser considerado tipicamente norte-americano, a partir do início da década de sessenta (60) e não encontra nenhuma relação com a tradição da pintura inglesa. Trata-se de um texto de construção delicada, pois seu teor foge de nossa abordagem, percepção e referência, pois não possuímos este olhar.

Podemos afirmar que a pintura norte-americana produzida na segunda metade do século 20, se constituiu em um corpo de conhecimento sólido, disposto a investigar os limites apresentados até aquele momento. Esta investigação ocorria em todos os gêneros desta pintura, tornando-a hegemônica no decorrer de poucos anos, tanto plástica como conceitualmente. Das novas possibilidades de fatura, propostas por De Kooning e Pollock, nos limites do gesto, do mesmo Pollock e Motherwell, até às investigações de campos cromáticos de Rothko1, passam rapidamente para a exploração de recursos gráficos com Rauschenberg, Warhol e Lichenstein. Em paralelo, esta experiência se dilata no horizonte cognitivo-geométrico com Barnett Newman e Ad–Reinhardt2. Limites óticos-retinianos eram questionados pela op-art e re-inventados pelo hiperealismo3. A pintura americana construiria em apenas duas décadas um complexo conhecimento com grande pulsão.

A partir de Richard Diebenkorn4 os limites entre figuração e abstração parecem se diluir. Figura aparenta ser consequência de abstração. Abstração parece surgir de procedimentos figurativos. Com Diebenkorn a pintura americana constrói uma nova etapa de superação de fronteiras5 ao diluir sistematicamente os limites impostos ainda na primeira metade do século 20, oferecendo à pintura um novo horizonte cognitivo, onde “figuração” e “abstração” poderiam se estabilizar em um todo harmonioso. É a partir deste ponto que surge no horizonte a pintura de John Nicholson6.

A situação proposta pela estética de Nicholson nos conduz a um território onde as conquista harmônicas da pop-art parecem se fundir com algumas possibilidades de empasto do expressionismo abstrato, criando nexo com as conquistas geométricas de Newman e Reinhardt. Constitui-se desta forma um corpo investigativo de grande originalidade, trabalhando com o legado construído por estes pintores.

Como estabilizar no plano da tela, tensões tão conflitantes? Através das propostas geradas por Diebenkorn. O jogo de forças entre diagonais, verticais e horizontais parece construir uma grade (grid) de contrastes harmônicos com os limites físicos impostos pela borda do suporte. A natureza interna do trabalho cria um panorama de grande tensão. Uma nova possibilidade cognitiva surge na forma de composição. Áreas de empasto dialogam com superfícies lisas e geométricas diluindo as fronteiras entre geometria e gesto, amplificando as tensões criadas no plano. Dentro do projeto norte-americano, Nicholson parece condensar vários procedimentos, criando possibilidades reais de composição nas fronteiras de escolas, até então bastante distintas, construindo uma trajetória ímpar de grande significado plástico. Se Diebenkorn já havia demonstrado ser possível a diluição de fronteiras, Nicholson parece construir sua investigação nos limites – talvez atritos – gerados por estas fronteiras, produzindo poética de grande tensão dramática.

John usa recursos de fatura de suas grandes abstrações nas cenas de intimidade feminina. Nas atuais figurações o jogo de tensões geradas se utiliza de harmonias por contraste, ocorrendo uma simbiose entre a intensidade da fatura, a escala escolhida e o resultado final. A composição resultante oferece um impacto sensorial ligado com as relações de tensão geradas entre a escala escolhida e o jogo de formas. Um conflito/diálogo é proposto pelo duelo entre as relações do todo com detalhes da pintura.

Nicholson usa com maestria os mesmos recursos de empasto e aguadas nas abstrações e figurações. Podemos perceber a mesma atitude. Nosso olhar encontra pequenas abstrações incluídas em detalhes das cenas femininas. Não existe exatamente uma “passagem” de “fase abstrata” para outra “figurada”. O que existe é um todo contínuo, um grande processo onde a pintura transita… flutua numa massa acrílica, onde empasto, velaturas e aguadas hora parecem exprimir figuras femininas, hora nos transmitem padrões cromáticos de forma e volume. John usa grades semelhantes nas duas naturezas de composição. O processo é o mesmo, construindo uma possibilidade de figuração composta por abstrações.

Bonnard, Vuillard e Matisse já indicaram este caminho. Diebenkorn ampliou a rota, oferecendo à percepção de Nicholson uma trilha para construir seu trabalho como um grande processo, onde cada tela é constituinte de um todo, completamente imerso na percepção da tradição americana. Nós ainda não temos este olhar…

Marco Cavalcanti novembro de 2009

1-  Na verdade o cromatismo foi percebido por Kandinsky, no surgimento do expressionismo alemão, mas esse fenômeno estético ocorria no psiquismo do autor e dos observadores.

Percebemos, no entanto, o cromatismo ganhando novas nuances ao atingir a arquitetura, em que está inserido, quando usado por Rothko, ampliando o uso, a extensão e a percepção do evento. Fenômeno de sensação térmica proporcionado pela presença da cor, o cromatismo faz parte do fenômeno estético, pertence ao campo de sensações estéticas sensoriais.

2-  O artista nos fala do trabalho de pesquisa de Ad–Reinhardt; no entanto percebe-se também um certo nexo entre sua composição e a escola Hard-Edge, no que se refere à pesquisa de relações harmônicas entre geometria e borda do suporte.

Se Rothko coloca o cromatismo da pintura atingindo o ambiente arquitetônico, Reinhardt produz um choque cromático de sensações térmicas, internas, entre o suporte e a visão do expectador.

3-  É interessante notar os enquadramentos e as angulações do hiperealismo, muito próximos de algumas cenas, pintadas por Nicholson. Se as faturas do acrílico e do esmalte sintético são profundamente diferentes, por vezes o “olhar” os aproxima.

4-  Richard Diebenkorn, pintor da Califórnia (1922-1993), fundamental para o entendimento da pintura contemporânea. É um dos principais responsáveis pelo aparecimento da “Nova Figuração” quando, à partir da década de 60, Diebenkorn diluiu as fronteiras entre figuração e abstração, colocando a figura em outro patamar de percepção, apontando caminhos para além do expressionismo abstrato, escola que ajudou a estabilizar na Costa Oeste, no início da década de 50.

Teve atuação decisiva no ensino de pintura da Califórnia, onde trabalhou como professor na School of Fine-Arts de São Francisco,. Sua importância e ação objetivaram a criação da Richard Diebenkorn Foundation no final do século 20.

5-  Em verdade, a superação dos limites se inicia, na pintura americana, no séc. XIX, quando os paisagistas alteram a escala dos chassis, dilatando o campo visual, e alterando escala e valores de percepção. Desta forma a paisagem pintada se torna dramaticamente diferenciada da escola inglesa. É fácil perceber a influência desta pintura no cinema americano, nas grandes telas do expressionismo abstrato, bem como no olhar de Anselm Adams.

6-  Os estudos de “Fine-Arts” de Nicholson se iniciam na cidade de Austin, no Texas, para logo após ser transferido para a Universidade de Houston, no mesmo estado. Durante o período das décadas de sessenta e setenta, Houston foi um grande pólo gravitacional do universo artístico norte-americano . Local de grandes debates e centro de pesquisa, a metrópole texana recebia, em seu campus universitário, os principais atores desta revolução estética. Não fazia parte da História como agora, pois ainda não havia o distanciamento crítico proporcionado pelo tempo.

O relato do artista abrange seu contato com Robert Rauchemberg e Claus Oldenburg entre tantos outros do incrível cenário, que transformou a escola de pintura de Houston em um dos principais geradores de arte do panorama norte-americano.